domingo, 13 de outubro de 2013

a velha

(10 de maio de 2013)

Relato de um quadro pintado por uma velha negra pintora desiludida, apaixonada, perdida e humilhada por tua vida estúpida e órfã de algum qualquer amor que não existiu, que amargamente morre pintando este teu último quadro.

Eu,
que sou retrato,
quadro pintado
aos montes de óleo,
desvelo-me em fólio 
e escorrego como posso por madeiras com fios negros;

Manifesto-me pelos dedos trêmulos da agoniada,
desesperada;
lambuzada com óleos azuis, 
resguardada e calada em bocas amareladas,
as fantasias loucas de tuas cintilantes noites passadas reluzem em teus olhos sem luz...

Cria-me menstruada de nostalgia,
sou orgia;
dita-me as cores exageradas de uma antiga menina que,
embora ainda viva, tua vida há tanto se esvaziava de encantos e de magias e
pinta-me, no fim das contas, a lágrima,
colorida, ensanguentada,
que escorrega dos fios de seus cílios
aos fios do pincel,
que molham minha face em cores douradas derivadas de mel...

Eu,
que sou retrato,
retrato os trapos e trepas 
de épocas passadas por aquelas bocas encharcadas; 
transas sem fim
são em mim a forma exclusiva de vida póstuma expressadas em meu folhetim...
Xingo os tantos
desencantos em meus traços,
me sinto santo
quando sinto que as mãos que me pintam, há tanto, enxugam prantos esboçados,
abafados,
calados...

Eu, 
que sou retrato,
Pintado de ruído,
de angústia carnal,
riscado em silêncio,
faz-me de revelia à memória aflita de uma velha úmida desapontada, desbotada,
perdida, esquecida;
Flor murcha!
De botões estapeados
pelas estações,
tem o cheiro do mofo
de tuas bodas escuras de cristal-quebrado que atravessaram gerações...


Eu,
que sou retrato,
sou soluço,
sou ingratidão,
meu busto é aflição do perdão do tempo que não veio, que tampouco há de vir;
sou o cansaço de sentir o tremor de mão,
sou o pavor do pedrão,
a dor de existir e se sentir que existiu em vão...

sou restos de tinta pingados a cada batimento cardíaco reduzido,
reduzindo aos poucos num quadro;
sou, enfim, os últimos traços da nossa velha como retrato,
de um peso morto, pintado.

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